terça-feira, 23 de março de 2010

Luiz Alves Sabores Sabarenses


Amêndoas

Da terra tirado em cores grosseiras,
O rude amendoim ao tacho é lançado.
E a mão inicia o duro trabalho
Do mexe e remexe.
Sofrida tarefa.
-Purificação.

O fogo severo, em rigor purgatório,
Crepita constante e a semente faz pura.

Por fim o açúcar, em canônica unção,
Em abraço contrito a amêndoa embranquece.

E em maio é levá-la à alvejante pureza
De tenras crianças
Que a Virgem coroam.

O branco sem manchas da alma da Virgem,
A candura sonora das vozes meninas,
E a alvura perfeita da amêndoa cheirosa
Igualam-se em afetos.

-São uma só coisa.

Bolo de Feijão

Amassar, com mão forte,
A massa do grão arrancada.

Violentá-la de gestos bruscos.
Espancá-la com fortes rigores.

Humilhar a pastosa teimosia
Em palmadas dizer-lhe quem manda.

E a massa.
Em cheirosas ardências,
Destila o seu ódio
Em picante vingança.

Guerra finda,
Paz definida,
Mãos de afagos dão forma,
Ao salgado delícia que,
Ao fogo de lenha,
Vai se espraiando
Em chiantes ardores.
 
Café colonial

Acordar
Meio que bandeirante.
De chapelões e botas a alma vestir.

Partir para a mesa, desbravador audaz,
No pilar do pilão, cafezinho cheiroso,
Rico ouro apurar

E garimpar, no pão de queijo,
A prata escondida nas serras luzentes.

No sonho, doçura branquinha,
No céu da boca sumir,
Evocar o insano sonho da esmeralda impossível.

No leite, vaquinha, estábulo,
Sofrida vida vaqueira,
Ver o diamante brilhar em leitosas transparências.

Em sabores e cheiros gerais
Batear as riquezas de Minas,
Fartar-se de tradições,
Encher a pança de história.

Então, com nobreza, sabarensemente,
Saudar o dia e a vida.




                                                                  Fubá de moinho d’água

Desliza o suave regato
Abrindo os caminhos mais frios,
Folgando em pedras e galhos
Em busca do velho moinho.

O seu desaguar gira a pedra,
Que acolhe o trêmulo milho.
E a mágica poerinha amarela
Mãos dóceis recolhem em cuidados.

Ao calor do bom fogo a lenha
Cresce e pega corzinha morena.
E em broa, biscoito e pão.
Transmuda-se o humilde fubá.

... e o cheirinho evocando infâncias.
...e o gostinho gritando: saudade.


 
Juca Doceiro

Antes que o burrinho,
No lombo cansado,
Da roça o gostinho ofereça,
O leite ao doce se faz
Em sua e calado processo.

Lá no tacho
Em fogo macio,
Rodopia dolente
Pacientes voteios.

A imensa colher
Não se cansa da faina,
Da fadiga dos giros
-Filosófica espera.

E o leite se engrossa
Em pasta mulata,
Brasileira e matuta,
Cheirando a sertão.

(A tal terra prometida
Onde correm leite e mel
É a rocinha do caipira,
Antessala do céu.)


Licor de Jabuticaba

Recolher,
Com piedosa paciência,
A pretinha apressada,
A frutinha veloz.

Esmagá-la com jeito
Fervê-la com calma..
Em sossego lançá-la
Ao exílio das pipas.

E o caldo adormece
Frutinha pastosa
Pra depois despertar
Cristalino licor.


Ora-pro-nobis

Malvadeza tombar a mata,
Fazê-la pasto,
De bois enchê-la
Para imolá-los
À animal ganância

Prefiro a planta
Que, além da cerca
De que se faz
A proteger-nos,
É alimento.
Com o gado concorre
Em rival nutrição.

Ave, plantinha santa
Que, com espinhos
Em forma de prece,
Ajoelha-se em ramas
Rezando por nós.

Ave, sacra plantinha.
Ora-pro-nobis,
Pecadores famintos,
Imerecedores de teu verdejante
E robusto sabor.




Pastel de barraquinha

Reza boa
Se faz com as mãos.

Mãos esculpem imagens,
Acodem doentes
Os pobres amparam.

E há mãos
Ungindo a farinha  que chia e explode
Em carnes e queijos.
Mãos que o trigo abençoam, 
Gerando milagre
Ao torná-lo pastel.

Pastel milagroso
Que ergue paredes,
Telhados conserta,
Igrejas restaura.

Mãos
Na massa.
Em gostosa alegria
De quem faz por Deus.




Trem bão, sô!

Acordar meio que bandeirante, partir para mesa em barroco apetite.
Chapelão enterrado e bota pra cima dos joelhos,
Começar a garimpagem:
Café com leite cheirando a fazenda.
Bolinho de feijão em ardência doçura.
E o pão de queijo.
Aquele pastelzinho também vai.
Tem broinha de fubá, biscoitinho bem mulato?
Tem, e demais da conta.
E esperar a hora do almoço, que ninguém é de ferro.

Meio-dia e a barriga lá na cacunda.

Humm... linguicinha com jeito sítio.
Covardia o franguinho caipira com ora-pro-nobis.

Sobremesa?

Docinho de leite que veio no lombo do santo burrinho.
Aquela amêndoa recendendo pureza.
Como deixar escapar o licorzinho de jabuticaba!?

E chega!
Fartos de tradições, pança cheinha de História, agora é só sair a passear as barroquices desta cidade abençoada.
(Ah!, falta a pinguinha  adormecida nos tonéis do Pompéu. Esquecer é pecado. Mortal! É beber e estalar a língua.)
Pronto.
E agora?
É sair por aí e ser feliz.

Luiz Alves 

Luiz Alves Religiosidade Sabarense


Corpus Christi


Um Deus vai passar.

Na madrugada fria
Mãos artistas trabalham escondidas.
E em flores e serragens coloridas
Os tapetes desenrolam
Ante o pasmo dos casarões.

Amanhece.
O sol se atreve a descobrir o olho
Dando luz ao cenário estupendo.
As janelas vão se abrindo em flores, sedas e bordados.

Vem a procissão,
Escorrendo em deslizar suave.
Opa vermelhas, sons festivos, os altares, os incensos...
Todas as glórias ao ilustre passante.

Depois
O vento insensível,
Os carros afoitos,
E o tapete se vai...

Mas fica a certeza da homenagem que se fez na madrugada inteira
E se eternizou naquele curto e intenso momento
Em que o Mistério,
Transmudado em vinho e pão,
Pisou a piedosa poesia dos tapetes sabarenses. 



Mês de Maio


Rosa mística, Casa de Ouro tu não és.
Graça Plena, a Escolhida não és também.
A Bendita, Estrela Guia, Mãe Celeste,
Neste maio nada disso te vai bem.

És em maio a criança que um dia
De Santana as lições colheu radiante.
E tu brincas, tão humana, tão menina,
As gostosas brincadeiras da infância.

Brancas vestes hoje inundam o teu trono.
Sabarenses te convidam a brincar.
São crianças, o melhor da raça humana.
Vem, Maria, desce aí do teu altar.

Rodopia a ciranda em meio a elas,
Esquece o mundo, Serva Humilde, e vai dançar.
Aproveita e põe na roda o teu Menino.
Mãe-criança, vamos todos cirandar.




Semana Santa


Os sonoros sinos em plangência secular
São os sinos mesmos de uma infância envelhecida.
O cheiro que o manjericão asperge a esmo
Conta perfumes de saudosa meninice.
As notas tristes desta banda que comove
Tocam a rilha de um filme antigo e bom.

E a procissão arrasta a alma emocionada.

A Mãe das Dores chora a dor dos torturados.
Madalena expõe infames preconceitos.
E o Cordeiro, inocente, ensangüentado,
Vai sereno a cumprir o seu trajeto,
Perpetuando-se no tempo e nas vidas.

E a gente cresce,
Ganha óculos e gravatas.
Mas não esquece o incenso,
O roxo,
A paixão,
O chiar dos sabarenses passos nas pedras das ruelas.

E a cada ano,
Batendo no peito,
Reescrevemos a mais dolorosa.

                                                                                     Luiz Alves


Luiz Alves Patrimônio histórico


Capela da Soledade

Correi, famintos tropeiros,
De pé, garimpos de dor,
Levai célebre vosso ouro
À capela da Solidão.
Figo da Estrada Real,
Dos seus vorazes fiscais.
Depressa, rumai ao desvio,
À estrada da Solidão.

Guardai o vosso tesouro,
Que é fruto de sangue e suor,
Produto de garra muita,
E filho de muita sezão.

Cá em cima a paz da capela,
Lá em baixo o velhas espera.
Pra frente, mineiros, vos vela
A Virgem da Solidão

Capela de Santo Antônio do Pompéu



Casamentos, mil noivados,
Namoricos, namorados...
Pobre Antônio...
Quer a paz do ar cheiroso,
Das cigarras, dos regatos.

Pega as malas, cai na estrada.
Entre anjinhos bem gorduchos
E florinhas mil douradas,
Corre aflito e se esconde
Na capela do Pompéu.

 
Chafariz do Kaquende

Ah, as águas escorrem
Das goelas do Kaquende...

Donde vêm, aonde vão?
Minam as sedes, escondem demônios?
Enfeitiçam e obrigam a volta?

Lá estão elas
Salutares, centenárias.
Gela o frio, queima o sol,
Em igual temperatura.

Lá vão elas,
Em sábia frieza,
Em líquida indiferença,
Se cumprindo



Igreja das Mercês

Não apenas as igrejas
Que torneiam com o ouro.
Não apenas a imagens
Torneadas com esmero.

Não o Deus onipotente,
O terrível Deus juiz,
O senhor de horrendas pragas,
Das trombetas, dos trovões.

Precisamos de algo assim
Tal o Deus da manjedoura.
Que sua rela pobreza
Bem desnudo se nos mostre.

Um local onde fiquemos
Tão humildes, tão mesquinhos,
De cuidados à mercê.

Algo assim,
Pureza e graça,
Bem Igreja das Mercês


Igreja do Carmo

Dentro da Igreja do Carmo
Os púlpitos conversam.
Jovem rico, humilde samaritana
Falam do ouro que escraviza,
Das duras marcas do preconceito.
Simão Stock e São João cruzam olhares
E neles tanta cruz por Santos ideiais.

Os atlantes suportam as dores do mundo.

E em todos eles a marca do Mulato,
Essa angústia que se arrastou pela vida
E arrancou,
De bruteza da pedra,
A dolorosa beleza
Que teimava em lá se esconder.



Igrejas de Ravena

Cuidado, afoito viandante,
A serpente-estrada ameaça.
Mil carros, mil curvas vorazes.
Cuidado, a vida é fugaz.

Desvia a rota e busca
Na paz de Ravena o descanso.
Sustém a sanha de ir.
Viver não é apenas chegar.

Coloca a alma em sossego,
Embriaga-te ali com a paz.
Duas pérolas barrocas te aguardam.

A estrada pode esperar.

 



Matriz de Nossa Senhora da Conceição
Tua grandeza me assusta,
Tua riqueza me oprime.
Conchas, volutas, capitéis,
Ouro, ouro, muito ouro.

Minha Senhora,
Cuida da minha pequenez,
Perdoa meus pobres limites,
Tolera minha mesquinhez.

Magnética, magnífica, magistral!
Tua casa nos espanta e abobalha.
Aqui todos nos sentimos servos,
Serventuários, servidores, serviçais.

Bem mereces, magnânima Senhora.
Nela Explode toda a tua realeza.
Mais que todas, na Matriz é que se vê
A morada majestosa da Rainha.


 
Nossa Senhora do Rosário dos Pretos


De escravos erguida.
Atrevidamente
No meio da cidade
Afrontando a branca arrogância.

Inacabada?
Em construção!
Apenas parada,
Tomando impulso
Para um salto que vai
Muito além da realidade da pedra.

Dura ferida que se mostra.
Denúncia viva.
Metáfora a gritar,
Em rudes pedras
Velhas chagas expostas.

A saga de uma gente
Cuja história
Inda está por terminar.




 


                                                                                Luiz Alves